Não existem horas mais perfeitas para os mistérios das coisas que as horas escuras. Parece que a escuridão, ao prejudicar o sentido da visão, aguça o tato, o olfato, a audição, o paladar, a intuição; suspende a certeza, a convicção do real e, a partir daí, tudo pode acontecer...
Numa dessas noites, dentro de um barraco feito de tábuas e outros rejeitos do mundo civilizado, uma criança chorava. A mãe a acalentava durante um tempo que já não sabia mais... Primeiro a embalava e, com o crescer da angústia, passara a sacudi-la, sem ao menos perceber que a criança dormira...
Despertando de seu alucinado movimento por um barulho qualquer, deitou seu pequeno fardo envolto em trapos e foi avivar as brasas do fogão de lenha – sua fonte de luz e calor, pois nunca lhe servia para cozinhar o que não havia.
De repente, sua aparência conformadamente catatônica transformou-se em muito o que fazer: pegou seu caldeirão feito de lata antiga de gordura de coco, dessas que hoje nem encontramos nos supermercados, e começou a cozinhar o sustento para o sono que a fome espantava. Em seu transe, pôs-se a juntar os ingredientes necessários para fortalecer-se e a seu pequenino: ferveu seu amor para servir de base à sopa, picou boas intenções da sociedade, juntou promessas e mais promessas do governo, do padre, do pastor, do ex-marido; derreteu uma colherinha que restava do seu salário injusto, refogou em seu suor, temperou com suas últimas lágrimas de esperança. Não colocou seu passado, nem sua infância, para não correr o risco de azedar. Porque passado de pobre é muito forte! É pesado!
Assim cozinhou madrugada afora... Esqueceu-se, dormiu e acordou serena, com cheirinho de comida pronta, com balbucios e risos de criança. O barraco não era o mesmo, estava revestido de paz. No fogão de lenha um anjo mexia o caldeirão que agora era de ouro. Ao levantar-se, olhou pela janela do barraco, viu nuvens e despediu-se da noite. Seus sonhos teriam luz para realizar-se. Olhando uma segunda vez, notou que o barraco voava e seus olhos se fecharam.
Meus olhos se abriram e comecei a me preparar para mais um dia de trabalho. Meu marido trouxe o café e os jornais, cuja principal manchete anunciava: BARRACO PEGA FOGO NA FAVELA...
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